Associação Brasileira de Violoncelos (1965 - 1982)

No início dos anos 60, a cidade do Rio de Janeiro há muito era a casa do mais importante violoncelista em atividade no Brasil: Iberê Gomes Grosso. O músico de origem paulista foi um dos fundadores da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal e da Orquestra Sinfônica Brasileira. Ademais, desde 1930, era estrela das orquestras de rádio, cuja música se fazia ouvir não só na então capital do país, mas em quase todo o território nacional. Para os violoncelistas em específico, Iberê era um sol em torno do qual orbitavam alunos de diversas regiões, que se mudaram para o Rio a fim de estudar com o mestre. Foi o caso de Nany Devos, violoncelista potiguar que chegou ali em 1947, recomendada por seu professor de Natal, Tomas Babini. Logo em seguida vieram outros conterrâneos de Nany, entre eles Aldo Parisot, Italo Babini e Mario Tavares.

Além de grande artista, de professor dedicado e competente, Iberê tinha a louvável capacidade de congregar os músicos, criando um ambiente amistoso, no qual interagiam tanto seus alunos quanto seus colegas de orquestra. “Os violoncelistas têm que ser uma irmandade”, era o que defendia, segundo o ex-pupilo Alceu Reis. “Ele passou isso para todos os seus alunos.”1 Reis é justamente da geração que Iberê formou na década de 60. Além dele faziam parte da turma Atelisa de Salles, Márcio Malard e Watson Clis. Com ajuda de Nany — à época chamada pelos mais jovens de Mãe e responsável por organizar os encontros que rendiam músicas, conversas e jantares —, os calouros de Iberê conviviam não só com os veteranos, àquela altura já violoncelistas experientes, mas também com outros nomes que compunham o naipe de cellos das orquestras do Rio. Participavam daqueles encontros Aldo Perachi, Edmundo Oliani, Eugen Ranevsky, Giorgio Bariolla, Homero Ornelas, Rafael Janibelli e Jorge Guerra Vicente.

Por ocasião do aniversário de 60 anos de Iberê, em 1965, o grupo se reuniu para fazer uma homenagem ao mestre e ali surgiu a ideia de criarem a Associação Brasileira de Violoncelistas (ABV), uma sociedade sem fins lucrativos, “dedicada a unir e congregar todos os executantes do instrumento, de todos os estados do Brasil, estimulando jovens talentos e promovendo concertos.”2 O aniversário de Iberê foi em 12 de junho e nove dias depois, em 21 de junho de 1965, nascia oficialmente a ABV, tendo Iberê como patrono. Consta na ata de fundação:

“Aos vinte e um dias do mês de junho de mil novecentos e sessenta e cinco, na residência do senhor Gerhard Peter Dauelsberg, por ocasião de uma homenagem prestada ao ilustre professor Iberê Gomes Grosso, por motivo de seu natalício, foi sugerida a criação de uma associação de violoncelistas, ideia entusiasticamente aceita por todos os presentes. Foram discutidos, então, vários assuntos, ficando estabelecido por unanimidade de votos que seria uma sociedade sem nenhum fim lucrativo, sendo um meio de unir e congregar todos os executantes do instrumento, tanto neste estado, como no resto do país, estimulando, assim, jovens talentos e promovendo concertos. Foi resolvido que a primeira apresentação da associação seria feita na Semana Villa-Lobos. Foi elaborado o estatuto, aceito por todos. A diretoria eleita foi a seguinte: presidente: Iberê Gomes Grosso; vice-presidente: Gerhard Peter Dauelsberg; primeira secretária: Ana Bezerra de Melo Devos; segunda secretária: Atelisa Salles; primeiro tesoureiro: Homero Dornellas e segundo tesoureiro: Márcio Eimard Mallard. Mais nada havendo a constar…”3

Essa foi a única ata que a associação produziu. E, como se verá a seguir, a ausência de outras talvez se deva ao fato de que, na prática, a ABV funcionaria mais como grupo de câmara.

ABV ENSEMBLE — Segundo Mario Tavares, foi a animação contagiante de Nany Devos que possibilitou o surgimento da ABV. Atelisa de Salles reforça o papel de Nany, a quem chamou de maior incentivadora e de “cabeça” da associação, e esclarece que “o principal objetivo do grupo era mesmo tocar junto”.4 De início, tocavam basicamente obras de Villa-Lobos, o compositor brasileiro que tinha mais obras para violoncelo. Aos poucos, o próprio Tavares contribuiu para ampliar o repertório, fazendo transcrições dos Prelúdios e Fugas de Bach para o instrumento. 

Salles relembra que a ABV também se tornou um espaço de convívio entre violoncelistas do Rio e aqueles que aportavam na cidade em turnê. Foram recepcionados pela associação nomes como Valeska, Fournier, Janigro, Navarra, Starker e Tortelier. Dentre os concertos realizados, Salles destaca a estreia do grupo no Museu Villa-Lobos, por ocasião do Festival Villa-Lobos, no qual tocaram as Bachianas Brasileiras n.º 1 e n.º 5. Já em setembro de 1966, a ABV se apresentou na recém-inaugurada Sala Cecília Meireles, onde estreou a Brasiliana n.º 11 para oito violoncelos e piano, de Radamés Gnatalli, que foi dedicada à associação.

Quando solicitado, o grupo se mobilizava para excursionar com intérpretes e arranjadores. Foi o caso da turnê com a cantora lírica Maria Lúcia Godoy. No programa, constavam tanto as Bachianas Brasileiras n.º5 quanto peças que demandavam formações menores, trios e quartetos de violoncelos. 

DIFICULDADES & DISPERSÃO — De modo geral, as turnês ficaram restritas ao Sul e ao Sudeste do país, dada a dificuldade de deslocamento que havia à época. Por essa mesma razão, embora se pretendesse uma associação brasileira, a ABV jamais conseguiu se expandir para além do Rio de Janeiro. “Era difícil conhecer direito os violoncelistas dos outros estados”, rememora Atelisa de Salles. “A gente não tinha essa facilidade que tá tendo agora. Talvez se tivéssemos acesso as tecnologias de hoje…”5

Mario Tavares relata que o grupo tocou junto por mais ou menos dez anos, até que a trajetória profissional de cada músico suscitou a dispersão. No entanto não houve um fim oficial para a ABV. Simplesmente as atividades ficaram em suspenso. O provável último concerto aconteceu em 20 de novembro de 1982, curiosamente noutra edição do mesmo evento em que o ABV tocou pela primeira vez: o Festival Villa-Lobos. Em carta à filha, enviada antes do concerto, Nany registrou que tocariam “novamente a Fantasia para 32 violoncelos e a Bachianas n.º 1, com 32 violoncelos também.”6

De toda sorte, a turma que estudou com Iberê e que esteve à frente da ABV, nas décadas seguintes foi responsável por formar ela própria parte significativa dos violoncelistas que hoje tocam nas salas e nos palcos de música clássica brasileira e que, em 2021, se juntaram para criar a Abracello. Assim, apesar de todos os contratempos, de todos os empecilhos que impediram antes o surgimento de uma associação verdadeiramente nacional, a lição que o mestre Iberê transmitiu a seus alunos foi preservada, passada adiante e abraçada, de norte a sul do Brasil, por nossa geração: “Os violoncelistas têm que ser uma irmandade.”

Notas

1 Barbosa, 2005, p. 186-187.

2 Idem, p. 206.

3 Barbosa, 2000, p. 140-141.

4 Salles, 2021.

5 Idem.

6 Barbosa, 2000, p. 176-177.

Referências

BARBOSA, Valdinha. Nany: suíte em cinco movimentos para uma violoncelista. Rio de Janeiro: Imprimatur, 2000.

___. Iberê Gomes Grosso: dois séculos de tradição musical na trajetória de um violoncelista. Rio de Janeiro:  SindMusi, 2005.

SALLES, Atelisa de. Entrevista com Atelisa de Salles: depoimento [nov. 2021]. Entrevistadora: Fernanda Monteiro. Abracello, 2021. 1 arquivo digital (73 min), son. color. Entrevista divulgada na página da Abracello no YouTube. Disponível em: https://youtu.be/69WhJutCjsY

Texto: Fernanda Monteiro